SOFIA
O despertador acordou Sofia às 6h30, como
todas as segundas-feiras. Mas Sofia demora a levantar da cama. Exausta pela
insônia que lhe persegue há dias, despertar é sempre uma guerra. Enquanto puxa o lençol para esconder o rosto
do sol, que já insiste em entrar pela janela, Sofia pensa na solidão daquele
apartamento de dois quartos, que divide com algumas baratas e uma pseudo amiga
imaginária da qual não sabe o nome e falta-lhe coragem de perguntar.
Sentada no canto da cama, ainda sonolenta
e olhando fixamente para a porta do banheiro entreaberta, Sofia imagina de várias
maneiras como percorrer os cinco passos até o banheiro. Com o peso da tristeza
inexplicável sobre os seus ombros e a dor da solidão machucando o peito, Sofia
percorre os infinitos passos que separam sua cama do banheiro. Ao entrar no
apertado e abafado cômodo, um cheiro fétido de mofo invade seus pulmões. No
box, Sofia se arrepia com o fio da água gelado que escorre do chuveiro
quebrado. O banho , logo cedo, nunca dura mais que cinco minutos. Se enxugando
na toalha, que um dia foi vermelha, Sofia reflete sobre o artigo que considera insignificante
, e que está escrevendo para a revista Orquídeas e Jardins. Na frente do
espelho do banheiro com a cara lavada e o cabelo oleoso, Sofia prepara-se para
a self diária. Com o sorriso amarelo
e triste de canto de boca e a hashtag
#partiutrampo, Sofia posta a self no Instagram.
Com o aplicativo ainda aberto, Sofia vê as últimas fotos postadas, todas sem
comentários. O fardo da solidão se faz presente também virtualmente, e com os
olhos marejados, Sofia entra no quarto
ao lado do banheiro que insiste em chamar de
“homeoffice”.
Parada há alguns segundos, que parecem uma
eternidade, na frente da escrivaninha, Sofia vira-se para o lado esquerdo e
percebe a presença da sua amiga sentada no chão ao lado da porta. Ela nunca
havia prestado atenção nesse ser, mas sabia da sua existência, em sua cabeça, e
convivia pacificamente com ela. Dessa
vez, Sofia observou calmamente sua amiga, para talvez se reconhecer nela. E viu
uma figura baixa, andrógina, extremamente pálida, com os olhos negros como uma
noite sem lua, o cabelo preto um pouco abaixo da orelha, um piercing no supercílio esquerdo, e notou
que ela usava um jeans escuro surrado, uma camiseta regata branca, os pés
descalços e que lia SANDMAN. Sofia se assustou quando o ser pálido, sentado no
chão de pernas cruzadas, abre um sorriso para ela. O sorriso rápido e enigmático
desconserta Sofia. Que logo senta-se na cadeira de plástico branco, com uma das
pernas trincada, e liga o notebook
para tentar finalizar o artigo que precisa entregar, por e-mail, no fim da
tarde.
O vento frio e úmido sobra por entre a
janela. As gotas de uma fraca chuva
respingam sobre a velha escrivaninha. Sofia levanta-se para fechar a janela.
Enquanto desliza a janela, Sofia observa as pessoas na parada de ônibus em
frente ao seu prédio. Ela gosta de observar aquelas pessoas pela manhã, e quase
sempre são as mesmas. Sofia observa por algum tempo o senhor elegante com sua
calça de linho e seu sapato bicolor lendo o jornal, uma voluptuosa mulher de
meia idade que se espreme em uma blusa de onça e um adolescente cheio de
espinhas com um olhar vidrado no celular e que ri sozinho.
Sentada sobre a cadeira branca, Sofia olha
fixamente para o cursor do mouse
piscando incessantemente no canto
direito da tela. Ela percebe que com incomensurável esforço a primeira página,
do artigo, foi preenchida com palavras.
Lembra-se que ainda faltam 3 laudas. Suas ideias sobre estrume, esterco,
substrato e fertilizantes se esvaem. Sofia olha para o celular, e entre
mensagens de texto e chamadas perdidas do seu chefe, se dá conta que faltam
trinta minutos para as 17h.
Uma falta de ar repentina invade Sofia. Uma
dor no braço esquerdo, que a incomoda há três dias, torna-se insuportável e
parece rasgar o seu peito. Lutando para respirar e agonizando com a dor no peito,
Sofia despenca da cadeira e cai olhando a chuva escorrer pela janela.
-
Já faz uma semana que ela não
sai pra comprar comida.
-
Como a senhora sabe?
- É que ela sempre trazia
brigadeiro pra mim. Eu moro aqui do lado, sabe. E fui eu que chamei vocês da polícia.
É que já tá fedendo, moço.
-
Cabo Pereira, pode arrombar a porta.
Sofia tenta abrir os olhos, mas um raio de
luz na janela encandeia sua visão.
- Não tenha medo, Sofia. Eu só
vim ajudar você. No começo é sempre assim, a luz incomoda mais do que devia.
-
Como assim?
- Calma, feche os olhos e abra lentamente.
Sofia fez o que a voz
pediu. A voz era calma e singela. E ela apenas confiou na voz. Ao abrir os
olhos, Sofia se viu desfigurada, inchada, apenas um pedaço de carne caído no
chão onde moscas e baratas se debatiam para achar um espaço ainda intacto no corpo
que jazia no chão daquele homeoffice.
Sofia olhou para o lado e reconheceu a amiga, de onde vinha a calma e singela
voz.
-
O que aconteceu? Eu não
entendo.
- Você morreu, Sofia! Há dias isso estava acontecendo e eu estava
apenas acompanhando. Agora você vai ser encontrada, e vamos seguir.
Sofia ouvia ao longe as
batidas na porta e as falas desconexas.
-
E como eu morri?
- De tédio , Sofia. Você morreu de tédio!
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